terça-feira, 20 de outubro de 2009

Tito Rosemberg - A utopia do surf

Esse texto foi escrito e publicado no waves em 19/12/2000 e está no site do próprio Tito Rosemberg (http://360graus.terra.com.br/titorosemberg/entrevista_tito.asp?did=6102), o que é uma honra para mim, já que ele é um dos meus maiores ídolos, ao lado do navegador Amyr Klink.

Por mais que eu esteja acostumado a andar de avião, o aviso de apertar os cintos para o pouso sempre me deixa com aquele friozinho na barriga. Ainda mais agora. Pela primeira vez na vida pisaria no velho continente, e o melhor de tudo, para encontrar e cair na estrada com um dos meus grandes ídolos.

Tudo começou quando pesquisava a próxima barca pela internet. Já estava com os olhos ardendo e com o saco cheio de ver sempre os mesmos pacotes turísticos oferecidos pelo mesmo preço entre o monte de agências de turismo quando fui parar num site maneiro: pessoal e cheio de fotos dos quatro cantos do mundo, tiradas por esse mesmo cara que oferecia uma alternativa diferente e tentadora para minha surf trip.

Viajar até o Marrocos de Land Rover para surfar ondas solitárias e perfeitas, com direito a atravessar o deserto e tudo. Dificilmente confiaria a minha sorte nas mãos de outra pessoa para cruzar o deserto a bordo de um carro. Mas nem eu nem ninguém de quem eu já tenha ouvido falar possui melhores credenciais do que meu cicerone.

Ele já viajou por mais de 80 países, já cruzou duas vezes (que eu saiba) o deserto do Sahara em carro próprio, já participou de um Camel Trophy em Bornéu, na Indonésia, onde atravessou uma selva praticamente intransponível com uma linda e competitiva expedição... mas, por mais que eu tentasse, nunca conseguiria lembrar de todas as suas aventuras.

Todas essas imagens e tudo o que eu já havia lido sobre as suas viagens rondavam a minha cabeça enquanto eu desembarcava em meio a multidão.

Alguns minutos se passaram até que eu o avistei me fitando num canto um pouco mais afastado. Não foi difícil entender seu sorriso quando me viu chegando com uma pequena mochila nas costas e uma leve e compacta embalagem com duas pranchas.

"Metade da roupa e o dobro do dinheiro", deixei escapar enquanto apertava sua mão. Ele sorriu mais uma vez e pareceu entender que eu havia devorado todo o conteúdo do seu site, todas as suas colunas e o seu livro. "Tito, é um enorme prazer conhecê-lo pessoalmente e, sobretudo, poder viajar e aprender um pouco com você", falei com toda a sinceridade do mundo.

"Deixa de frescura, moleque, o prazer é todo meu em poder te levar pra pegar umas boas. Amarra logo essa prancha aí em cima e vamos nessa". O barulho daquele potente motor a diesel ligando soou como a mais bela música em meus ouvidos. À medida que andávamos o papo ficava mais e mais agradável. Reggae no toca-fitas, um swell a caminho, pranchas boas no rack, uma barraca confortável no porta-malas... enfim, não havia nada no mundo que precisássemos que não estivesse naquele carro.

Cruzamos o estreito de Gibraltar com o carro a bordo de um navio. A viagem entre Algeciras (Espanha) e Ceuta (África) passou num piscar de olhos e, antes que me desse conta, já estávamos no litoral marroquino. A nossa primeira parada foi em Mehdiva-Plage, onde surfamos geladas direitas quilométricas por horas, sempre ladeando um pomposo quebra-mar. Foram alguns dos mais longos tubos da minha vida, até então.

Descemos mais algumas centenas de quilômetros e paramos em Agadir para fugir do crowd. Foi difícil acreditar na perfeição das ondas de Killer´s e Ancre. Direitas e esquerdas do mais alto quilate me faziam pensar a todo instante que estar ali, surfando sem crowd e tão bem "guiado" era digno dos mais belos e inspirados sonhos.

Surfamos mais um punhado de ondas perfeitas e vazias nessa viagem. Foram incontáveis tubos. Cada um incentivando o outro ao máximo. Dividíamos aquelas ondas sem um pingo sequer de egoísmo. Em nenhum momento peguei duas séries seguidas sem que antes ele pegasse a dele, e vice-versa. Não deixamos sequer um papel de bala naquele lindo e infinito deserto.

À noite, ficávamos em volta da fogueira para nos esquentar ao som de seu violão, ou conversando sobre os problemas do mundo e qual é a nossa parte nessa história. Sobre a situação do nosso país e o comodismo do nosso povo, incapaz de sequer levantar a voz contra nossos representantes corruptos.

Falávamos sobre a falta de união e de engajamento dos surfistas quanto à preservação das nossas praias. Sobre o violento crowd em nossas praias, onde todos querem pegar todas as ondas para esconder a frustração alimentada pela mídia por não sermos o Kelly Slater, por não sermos campeões mundiais.

Felizmente, aprendi a tempo a não me calar diante de tanta coisa errada e de fazer a minha parte nessa história. A trabalhar no que estiver ao meu alcance para deixar um mundo melhor para os meus filhos. E tudo isso aprendi entre braçadas e tubos. Descobri que por mais alienante que o surf possa ser, há espaço na cabeça do surfista para trabalhos sociais e para engajamentos políticos.

É por isso que continuo a me perguntar sobre quem deveria servir de exemplo para as novas gerações de surfistas. Seria aquele moleque folgado com um quarto cheio de troféus, mas que rabeia todo mundo, que se orgulha em quebrar pranchas (muitas vezes a socos por ter perdido uma bateria), mas não sabe nem como elas foram feitas, que sente orgulho por pegar algumas boas ondas num pico que só este ano já apareceu 20 vezes nas revistas?

Ou o exemplo deveria ser aquele cara que conheceu o mundo inteiro com as próprias pernas, que já perdeu as contas de quantas ondas perfeitas já surfou antes que elas fossem publicadas sequer uma vez numa revista, que batalha para ajudar os índios e os povos nativos de cada lugar por onde passou e que, ainda por cima, é capaz de falar e de escrever bem para dar continuidade ao seu legado?

Independente de quem deveria ser o exemplo das futuras gerações, o meu ídolo no surf é o único surfista capaz de me ensinar essas lições. Valeu, Tito Rosemberg, continue na luta que ela dará resultados. E obrigado por me ciceronear nessa viagem, em que plano for.

Minha mãe não entendeu nada quando apareci na cozinha falando do Marrocos, com a cara amassada e um copo d'água na mão. "Liga não, mãe. É que o meu sonho foi bom demais", falei sorrindo, enquanto saía da cozinha.

2 comentários:

  1. Salve Daniel! Achei seu blog por acidente, e logo este texto tão interessante. Fiquei mais uma vez lisongeado com suas palavras e espero que um dia nos encontremos aqui na Pipa! Grande abraço

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  2. Grande Tito, que surpreza tão agradável encontrar um comentário seu por aqui. Sempre tive vontade de conhecer a Pipa. Esse encontro não tardará. Abração.

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